Crescimento e bem-estar: entre o sinal e ruído
O crescimento econômico é muitas vezes apresentado como um sinalizador que diz se um país avança ou não, e para isto, é preciso distinguir os diferentes horizontes de tempo. No curto e médio prazo, por exemplo, o Produto Interno Bruto (PIB) oscila por demasiadas vezes. Crises financeiras, choques de oferta, guerras ou pandemias fazem com que os números produzam variações que pouco ou nada dizem sobre a trajetória real de um país. Nesse intervalo, o PIB se comporta como aquilo que Nassim Taleb chama de ruído, logo, os olhos se fixam nos dados mas o que enxergamos não é sinal de longo prazo, e sim movimentos aleatórios e, principalmente, passageiros.
E quando nos voltamos aos olhares individuais, o que interessa para a vida das pessoas não é a renda medida em um único ano, e sim o seu consumo ao longo do tempo. É ele que revela o padrão de vida, e por isso, os economistas defendem o uso do consumo per capita no lugar do produto per capita como medida de bem-estar. Um exemplo bem simples é que se os Estados Unidos perdessem metade do seu PIB per capita em um ano e no seguinte recuperassem essa perda, o consumo das famílias não exatamente variaria nesses extremos, neste caso em 50%. O acesso a bens e serviços depende de fluxos mais estáveis que a renda bruta, e é nesse ponto que entende-se por que olhar apenas para o crescimento pode enganar sobre o verdadeiro bem-estar.
Se o consumo diz mais sobre o padrão de vida e o curto prazo é dominado por ruído, até que ponto mais dinheiro garante mais bem-estar, ou neste caso, felicidade?
Para responder a essa pergunta recorremos, como faria qualquer bom economista, a alguns dados e ao respaldo teórico. Quanto aos dados, foram obtidos do World Bank e da Gallup. No levantamento da Gallup, presente na página What Is the World’s Emotional Temperature?, selecionamos as métricas “Smiled” e “Enjoyment” e extraímos a média de cada país. A média foi cruzada com o PIB per capita ajustado pela Paridade do Poder Compra (PPC) em dólares internacionais constantes de 2021 da base World Development Indicators do World Bank. Então aplicamos logaritmo ao PIB per capita para compatibilizar a escala com os valores médios de emoções positivas.
Como medida de felicidade, usamos duas ondas do World Values Survey. A Round Five – Country Pooled Datafile, organizada por Inglehart et al. (2014), e a Wave 7 (2017–2022), coordenada por Haerpfer et al. (2022). As duas bases fornecem dados de percepção subjetiva de felicidade, o que permite observar padrões comparáveis entre países e no tempo.
O encontro entre riqueza e emoções
A Figura 1 relaciona PIB per capita em PPC constante de 2021 no eixo horizontal com a média de emoções positivas no vertical. Em níveis muito baixos de renda, pequenos ganhos já aparecem associados a significativos aumentos nas emoções positivas, como mostram Afeganistão com 1.984 dólares e média de 30,5 e República Democrática do Congo com 1.456 e 57 quando comparados à Bolívia com 9.844 e 78,5. Também aparecem países com médias de emoções positivas muito altas (na casa dos 80) espalhados por diferentes faixas de renda (entre 12.000 e 67.000 dólares), entre eles Guatemala, Indonésia, Costa Rica e Islândia. Entre as nações com mais renda, Singapura, Luxemburgo, Irlanda e Estados Unidos exibem felicidade até mesmo elevada, variando entre 73 e 80, porém o ganho não cresce na mesma proporção da renda.
O caso brasileiro: crescimento sem euforia
Comparar felicidade entre países impõe certas dificuldades, pois culturas distintas valorizam dimensões diferentes da vida e podem manter níveis cronicamente mais altos ou mais baixos de satisfação. Por isso, muitas vezes é mais útil observar a trajetória dentro de um mesmo país. No caso do Brasil, os dados do World Bank indicam que o PIB per capita em PPC e dólares internacionais constantes de 2021 passou de 15.657,48 em 2006 para 17.917,75 dólares em 2018.
O Brasil teve crescimento durante este período? sim, inclusive próximo de 14,4%. Porém repare um fato interessante, entre 2006 a 2018, na Tabela 1, a parcela que se declara muito feliz caiu 6,3 pontos percentuais passando de 34 para 27,7. Ao mesmo tempo a parcela feliz subiu 6 pontos percentuais de 56,4 para 62,4. As categorias não muito feliz e infeliz quase não mudaram com altas de 0,1 e 0,2 ponto percentual. A análise ao longo do tempo sugere uma realocação do topo para o meio da distribuição de bem-estar. Há ganho material medido pelo consumo mas a sensação de imensa felicidade não avança no mesmo ritmo (veja novamente os países com alta renda da Figura 1).
| Felicidade | 2006 | 2018 |
|---|---|---|
| Muito feliz | 34,0 | 27,7 |
| Feliz | 56,4 | 62,4 |
| Não muito feliz | 9,0 | 9,1 |
| Infeliz | 0,6 | 0,8 |
A Tabela 2 mostra a distribuição conjunta de felicidade e classe social no Brasil em 2017-2018. Se as variáveis felicidade e classe social fossem independentes, esperaríamos que em todas as classes a proporção de pessoas muito felizes fosse de 27,7%. No entanto, isso não ocorre. As maiores concentrações de pessoas muito felizes aparecem na classe média, enquanto nas classes média baixa e baixa a maior parcela está entre os felizes. Já nas classes alta e média alta, apesar do tamanho reduzido da amostra, há prevalência de pessoas felizes e muito felizes, respectivamente.
| Felicidade | Alta | Média-Alta | Média | Média-Baixa | Baixa | Total |
|---|---|---|---|---|---|---|
| Muito feliz | 1 (0,1%) | 16 (1,0%) | 185 (11,1%) | 134 (8,0%) | 126 (7,5%) | 462 (27,7%) |
| Feliz | 3 (0,2%) | 4 (0,2%) | 329 (19,7%) | 354 (21,2%) | 351 (21,0%) | 1.041 (62,3%) |
| Não muito feliz | 0 (0,0%) | 4 (0,2%) | 29 (1,7%) | 41 (2,5%) | 78 (4,7%) | 152 (9,1%) |
| Infeliz | 0 (0,0%) | 1 (0,1%) | 2 (0,1%) | 3 (0,2%) | 8 (0,5%) | 14 (0,9%) |
| Total | 4 (0,3%) | 25 (1,5%) | 545 (32,6%) | 532 (31,9%) | 563 (33,7%) | 1.669 (100,0%) |
O teste qui quadrado confirma dependência estatística entre as variáveis, com valor de 69,649 e p-valor inferior a 0,001. Com 95% de nível de confiança, isso nos leva a rejeitar a hipótese nula de independência. Contudo, o V de Cramer apresenta 0,1179, um valor baixo que aponta para uma relação fraca. A evidência, portanto, nos mostra que renda e felicidade se relacionam, todavia de forma não linear, o que nos leva ao paradoxo de Easterlin. E se esta é nossa evidência, o que realmente eleva a felicidade se não apenas a renda?
O paradoxo de Easterlin e os limites da renda
O paradoxo de Easterlin, apontado por Richard Easterlin na economia da felicidade, mostra que a relação entre renda e bem-estar não é tão linear como parece intituitivamente, embora países pobres experimentem fortes ganhos de felicidade quando a renda cresce, simplesmente tal ligação perde-se em sociedades ricas. A curva aplana-se e outros fatores como saúde, relações sociais, tempo livre e segurança (não só estas, como muitas outras variáveis) passam a assegurar maior percepção de satisfação.
Clark, Frijters e Shields (2008) estudaram o paradoxo de Easterlin e propuseram uma formulação que ajuda a compreender como a felicidade se conecta à renda, ao status e ao lazer. A Equação 1 pode ser expressa da seguinte forma:
$$ u_{t} = U\big(u_{1}(Y_{t}), u_{2}(Y_{t} \mid Y^{*}), u_{3}(T - l_{t}, z_{t})\big) $$
onde $ U(.) $ é a função que combina as subutilidades em uma utilidade final. O termo $ u_{1}(Y_{t}) $ representa a utilidade do consumo, que cresce a taxas decrescentes em relação à renda própria. O termo $ u_{2}(Y_{t}) $ capta o efeito da renda relativa, sendo $ Y^{*} $ a renda do grupo de referência, que pode ser família, vizinhos, colegas ou até a própria renda passada ou futura esperada.
A subutilidade $ u_{2} $ é entendido como o retorno de status da renda e obedece à propriedade de homogeneidade de grau zero, o que significa que aumentos proporcionais em $ Y_{t} $ e $ Y^{*} $ não alteram a utilidade relativa. Já $ u_{3}(T - l_{t}, z_{t}) $ expressa a satisfação vinda do lazer, em que $ T $ é o tempo total, $ l_{t} $ são as horas de trabalho e $ z_{t} $ reúne variáveis demográficas e sociais que influenciam o bem-estar.
Renda, status e lazer na vida cotidiana
Muitos termos e letras, no entanto, como isso se incorpora no cotidiano? Pense na Joana. Ela é gerente de marketing em São Paulo e, depois de anos de carreira, passa a morar em um condomínio de luxo. Ali, descobre que apesar de sua renda mensal de 30.000 reais colocá-la entre os 1% mais ricos do Brasil, ainda é vista como a menos rica entre os vizinhos. O marido comenta em tom de comparação que os outros casais parecem ter mais sucesso, mesmo que Joana já ganhe mais do que 99% da população brasileira, onde 90% vivem com menos de 3.500 reais por mês.
A historinha hipotética de Joana se conecta à Equação 1 da utilidade. A renda própria $ Y_{t} $ aumenta a felicidade, mas a taxas decrescentes. O salto de 1.000 para 2.000 reais transforma o padrão de vida de Joana. Já a diferença entre 30.000 e 31.000 reais pouco altera o seu bem-estar. Ao mesmo tempo, a renda de referência $ Y^{*} $ torna-se relevante, pois quando Joana compara seus 31.000 reais aos vizinhos que recebem 50.000 reais, sua utilidade relativa cai. Para ganhar posição (isto é, status), ela aceita trabalhar mais horas. Como o tempo total é fixo (24 horas), o lazer diminui.
A consequência disso é excesso de oferta de trabalho, estresse e queda no bem-estar mental. E acabamos por entrar nesta espiral, onde o ganho de status privado não gera benefício coletivo. O resultado é um condomínio cheio de gente bem remunerada, contudo, nem sempre mais feliz.
E para não ficarmos somente em teoria e cenários hipotéticos, observe a Figura 2, que mostra no eixo horizontal a escala de renda, onde 1 representa a mais baixa e 10 a mais alta, assim como o eixo vertical representa a média de satisfação referente a cada escala de renda.
Nas escalas mais baixas (1 a 4) a satisfação média cresce de forma contínua, o que confirma a ideia de que sair da escassez traz grandes ganhos de bem-estar (lembre-se da nossa ideia de sair de 1.000 para 2.000 reais). Já entre as escalas 5 e 7 a curva deixa de ser tão ascendente e até oscila. No topo da distribuição, a curva praticamente torna-se achatada. A satisfação cresce de 8 para 8,6 entre as escalas 8 e 9, porém logo recua para 8,1 na escala 10. Fica óbvio, neste sentido, que aumentos adicionais de renda não necessariamente garante maior felicidade.
Considerações finais: entre abundância material e vazio interior
Os resultados analisados neste artigo, assim como o arcabouço teórico trazido em paralelo nos mostra que renda própria traz ganhos que diminuem em intensidade à medida que aumenta, caracterizando a utilidade marginal decrescente. Quando as famílias, em nível micro, ou países, em nível macro, atingem altos padrões de vida, a renda absoluta deixa de ser o principal fator e as comparações sociais é que, de forma ineficiente, garante maior satisfação.
Em países pobres ou para quem vive abaixo de um nível de subsistência, o aumento de renda costuma transpor-se em elevados ganhos de bem-estar. Blanchard (2007) sugere um limite inferior por volta de 20.000 dólares per capita, já Clark, Frijters e Shields (2008) indicam valores na casa de 10.000 dólares per capita. A ideia central é que acima desses intervalos (seja 10.000 ou 20.000 dólares), os acréscimos de renda tendem a render cada vez menos felicidade. No cenário brasileiro, até a escala 4 de renda o aumento da satisfação é contínuo. A partir daí, o bem-estar oscila cada vez mais à medida que as escalas de renda aumentam.
O paradoxo de Easterlin nos confirma a evidência tanto internacional quanto ao cenário brasileiro ao mostrar que crescimento por si só não sustenta aumentos duradouros de felicidade. Há limites e há subjetividade. Expectativas e contextos locais influenciam a medição do que vem a ser felicidade.
Ainda assim, séries longas com muitos indivíduos revelam alguns padrões, principalmente em como outros elementos passam a influir tanto quanto o tão utilizado PIB. A estabilidade institucional, a qualidade da saúde e segurança pública, assim como a confiança de um residente em seu país, explicam por que países escandinavos aparecem no topo das comparações de satisfação.
O contraponto está no Brasil, que mesmo presenciando crescimento, viu aumentar a proporção de pessoas infelizes e diminuir a taxa dos que se consideravam muito alegres. Desemprego estrutural, ciclo vicioso de desigualdade e falhas institucionais graves ajudam a entender um pouco esse desencontro entre a “civilização do ter” e a “civilização do ser”.
Eaí, o que você acha? Concorda, discorda ou tem algo a acrescentar? Comente abaixo e reaja ao post!
Referências
BLANCHARD, O. Macroeconomia. 4ª Edição. São Paulo, Ed. [S.l.]: Pearson, 2007.
CLARK, A. E.; FRIJTERS, P.; SHIELDS, M. A. Relative income, happiness, and utility: An explanation for the easterlin paradox and other puzzles. Journal of Economic literature, American Economic Association, v. 46, n. 1, p. 95–144, 2008.
Gallup Poll. Gallup World Poll: What Is the World’s Emotional Temperature? Washington, D.C.: Gallup., 2023. Acesso em: 20 set. 2025. Disponível em: https://news.gallup.com/interactive/268449/world-emotional-temperature.aspx .
HAERPFER, C. et al. (Ed.). World Values Survey Wave 7 (2017–2022) Cross-National Data-Set. World Values Survey Association, 2022. Acesso em: 20 set. 2025. Disponível em: https://www.worldvaluessurvey.org/WVSDocumentationWV7.jsp .
INGLEHART, R. et al. (Ed.). World Values Survey: Round Five - Country-Pooled Datafile. Madrid: JD Systems Institute, 2014. Acesso em: 20 set. 2025. Disponível em: https://www.worldvaluessurvey.org/WVSDocumentationWV5.jsp .
World Bank. World Development Indicators. Washington, D.C.: World Bank, 2023. Acesso em: 20 set. 2025. Disponível em: https://databank.worldbank.org/source/world-development-indicators .